Falar sobre plano de saúde no Brasil é, na maioria das vezes, falar sobre segurança. É o sonho de não depender apenas do SUS, de ter um lugar para correr quando um imprevisto acontece. Mas quem já contratou ou está pensando em contratar descobre logo que não basta pagar a primeira fatura e sair marcando todos os exames, consultas e cirurgias da vida. Existe uma palavrinha curta, mas que pode fazer toda a diferença entre estar amparado e estar desamparado: carência.
A carência é, de certa forma, o pedágio invisível que todo mundo paga para ter direito de usar tudo o que o plano oferece. Não adianta achar que por ter o cartão na mão, o hospital credenciado vai abrir as portas para qualquer coisa logo no primeiro dia. E entender isso é o que separa quem faz um contrato consciente de quem passa raiva quando mais precisa.
Muita gente não sabe, mas a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão que regulamenta o setor no Brasil, definiu prazos máximos. Esses prazos existem justamente para equilibrar o jogo entre operadoras e beneficiários. Ninguém quer bancar um sistema onde as pessoas só entram quando já estão doentes, fazem um procedimento caro e cancelam logo depois. Mas também não dá para deixar o consumidor refém de uma espera que não faz sentido.
Por isso, conhecer como funciona a carência é tão essencial quanto comparar preço ou rede de hospitais na hora de escolher o plano.
Por que existe carência?
Para entender a carência, é preciso enxergar o sistema de saúde suplementar como um grande condomínio. Todo mundo paga, mas nem todo mundo usa ao mesmo tempo. É assim que o dinheiro de quem está saudável cobre o tratamento de quem ficou doente. É o famoso pacto coletivo.
Se esse equilíbrio é quebrado por exemplo, se as pessoas entram no plano só quando precisam de um procedimento caro quem já está pagando de forma regular é que acaba pagando mais. Então, a carência é uma forma de evitar abusos, equilibrar o caixa das operadoras e manter o valor das mensalidades dentro de algo minimamente aceitável.
Mas claro, para o consumidor, esse argumento faz sentido na teoria. Na prática, ninguém quer pagar por algo que não pode usar quando mais precisa. E aí surge o primeiro ponto de tensão. É por isso que as regras existem e são fiscalizadas. O objetivo é que não vire bagunça: a operadora não pode inventar prazos absurdos, nem negar cobertura para sempre.
Quais são os prazos de carência, afinal?
Aqui vem a parte que pouca gente lê no contrato. A ANS estipula prazos máximos. O que isso significa? Que as operadoras até podem reduzir esses prazos, como estratégia de marketing, por exemplo, mas jamais aumentá-los.
Esses prazos são:
- 24 horas para casos de urgência e emergência — Acidentes pessoais e complicações na gestação são exemplos clássicos. Sofreu um acidente de carro no dia seguinte à assinatura do contrato? Tem que ter cobertura.
- 300 dias para partos a termo — Para evitar que alguém contrate o plano já sabendo da gravidez só para ganhar cobertura.
- 180 dias para doenças e procedimentos de maior complexidade — Cirurgias, internações, exames mais caros.
- 24 meses para doenças ou lesões preexistentes que não foram declaradas — É o que chamam de Cobertura Parcial Temporária (CPT).
Tudo que não se enquadra nesses grupos segue, em geral, o prazo de 180 dias, ou menos, dependendo do contrato. Vale lembrar que consultas básicas e exames simples normalmente têm prazos menores, por volta de 30 dias, mas não existe regra fixa para isso além do teto máximo.
Carência zero existe?
É aí que a maioria das pessoas se encanta e, às vezes, se engana. Muitas operadoras fazem campanhas com “Carência Zero” para atrair clientes, mas sempre existe um asterisco. É comum valer só para consultas e exames simples, ou apenas quando o plano é coletivo empresarial com número mínimo de vidas.
Por exemplo, se uma empresa contrata um plano para 50 funcionários, é possível que todos tenham isenção de carência para quase tudo, logo de cara. É o que faz o plano empresarial ser tão desejado até por microempreendedores, o famoso MEI. Em muitos casos, o custo por pessoa é menor, justamente porque o risco é diluído num grupo maior.
Portanto, carência zero não é exatamente mentira, mas é um benefício condicionado a regras bem específicas. Vale sempre ler a cláusula com cuidado, perguntar para o corretor e, principalmente, imaginar cenários reais: “se eu precisar de uma cirurgia amanhã, estou coberto ou não?”
Cobertura Parcial Temporária: a carência que ninguém gosta de ouvir
Vamos imaginar que uma pessoa tenha diabetes há anos e contrate um plano novo. Se ela omitir essa informação na declaração de saúde, poderá ter problemas graves depois. Se declarar, o plano pode aplicar a CPT: durante até 24 meses, tudo que estiver ligado àquele diagnóstico pode ficar de fora. Ou seja, internações, procedimentos cirúrgicos e até medicamentos para essa doença podem não ter cobertura.
Isso é legal? É. Está na lei, faz parte do jogo. É duro? É também. Por isso, mais do que nunca, ser honesto na hora de preencher a ficha de saúde é essencial. A omissão é um risco duplo: se a operadora descobre, pode até rescindir o contrato por fraude. É uma economia que não vale a pena.
Portabilidade de carências: existe luz no fim do túnel
Se existe uma parte boa nessa história toda, ela se chama portabilidade de carências. Resumidamente, quem já cumpriu prazos em um plano não precisa começar tudo de novo se decidir mudar de operadora ou produto, desde que siga algumas regras.
A ANS garante esse direito. É como se você carregasse seus meses de espera já cumpridos na bagagem. Muita gente, inclusive, não troca de plano por achar que vai perder tudo. Mas não é bem assim.
Para ter direito, o consumidor precisa estar com as mensalidades em dia, o plano antigo precisa ser compatível em tipo de cobertura, e o prazo para fazer a troca tem janela certa. Normalmente, a janela abre no aniversário do contrato ou no fim de vigência de carências. Tem que ficar de olho.
O grande vilão: falta de informação
Pergunte a dez pessoas se elas sabem exatamente qual é o prazo de carência do seu plano. Se uma souber, já é muito. É comum ver casos de gente desesperada, que paga um plano há meses, mas descobre na emergência que aquele exame de alta complexidade não está liberado.
Nessa hora, a sensação de frustração é gigante. E a culpa, muitas vezes, é compartilhada: o consumidor não leu o contrato, o corretor não explicou direito, a operadora não foi clara na venda. Por isso, informação é tudo. A ANS obriga que toda operadora forneça a lista de prazos de carência por escrito, de forma clara. O beneficiário também pode consultar tudo pelo portal da própria ANS.
Por que ainda há confusão?
Porque o sistema de saúde suplementar brasileiro é confuso por natureza. São muitos tipos de plano — individual, familiar, coletivo empresarial, por adesão, regional, nacional, ambulatorial, hospitalar, com ou sem obstetrícia, e cada um tem regras próprias de reajuste, carência, rede credenciada.
Além disso, há muita diferença de interpretação entre contratos. Alguns planos têm rede própria (caso da Hapvida, por exemplo), outros trabalham só com credenciados. Alguns planos são flexíveis na portabilidade, outros dificultam. É um labirinto burocrático que exige paciência.
Como usar a carência a seu favor
Sim, é possível fazer da carência uma vantagem. Muita gente que não precisa de procedimentos imediatos consegue negociar preços mais baixos justamente por aceitar prazos maiores de carência. Para quem tem boa saúde e faz check-ups simples, um plano com coparticipação e carências pode sair bem mais barato do que um super completo com carência zero e cobertura irrestrita.
Empresas pequenas também usam a estratégia de reunir sócios e dependentes para bater o mínimo de vidas e escapar de carências maiores. É legal, é comum e, desde que siga as regras, é uma forma de usar a lei do jeito certo.
Quando a carência vira problema de verdade
Vamos imaginar uma família que contrata um plano hoje e, três meses depois, descobre uma doença grave. Se o tratamento envolver internações e cirurgias de alta complexidade, pode ser que ainda esteja dentro do prazo de carência de 180 dias. O resultado? Terá que recorrer ao SUS ou pagar do próprio bolso.
É nessas horas que muitos consumidores se sentem enganados mas, tecnicamente, não foram. Foram apenas mal informados. Por isso, insistir em simulações reais, perguntar tudo e ter as respostas documentadas é essencial.
Carência é tudo igual para todo mundo?
Não. A legislação vale para todo o Brasil, mas cada operadora cria suas estratégias comerciais dentro desses limites. Algumas são mais rígidas, outras mais flexíveis. Algumas operadoras lançam campanhas de isenção de carência em datas específicas: Dia das Mães, Natal, Black Friday da saúde.
Além disso, quem tem CNPJ (mesmo MEI) costuma conseguir condições melhores que pessoa física. Vale fazer conta. Às vezes abrir um MEI só para ter plano empresarial compensa.
E se a operadora não cumprir o combinado?
A ANS existe para fiscalizar isso. Qualquer negativa de cobertura dentro do que está contratualmente garantido pode e deve ser denunciada. O consumidor pode abrir reclamação na ANS, que costuma resolver uma parte considerável dos conflitos sem precisar de ação judicial.
Além disso, o Procon também atua, e o Judiciário tem se mostrado cada vez mais firme em defender o consumidor, principalmente quando há descumprimento do que foi prometido.
Reflexão: vale ou não vale ter plano de saúde com carência?
A resposta real é: depende. Para quem não tem urgências ou doenças crônicas, um plano com carência pode representar economia. Para quem já tem diagnósticos ou planos de maternidade, pode ser melhor investir um pouco mais por um plano com carências reduzidas ou carência zero.
O que não dá é assinar sem saber. Não dá para contratar um produto de valor alto como um plano de saúde por impulso, confiando só em promessa de vendedor. Ler cláusulas, guardar e-mails, anotar perguntas e respostas faz parte do jogo.
O papel do corretor
Se tem alguém que deveria ser o principal aliado do consumidor nessa jornada é o corretor. Um corretor ético não vende ilusão. Explica tudo, mostra as entrelinhas e compara opções. Por isso, na dúvida, pergunte tudo: urgência, emergência, parto, exames de alta complexidade, terapias. Peça simulação de carências no papel.
Conclusão: carência é direito, não castigo
Se olharmos de fora, pode parecer injusto pagar e não poder usar tudo de imediato. Mas, dentro do sistema como ele é hoje, a carência é uma engrenagem necessária. O que não pode acontecer é ela virar desculpa para abuso.
O consumidor que entende como funciona tem muito mais poder de decisão. E poder, nesse caso, é sinônimo de segurança. Saber exatamente quando e como usar o plano faz diferença quando a saúde aperta e, mais do que isso, protege o bolso e evita frustrações.
Em tempos em que a saúde pública enfrenta desafios enormes, ter um plano pode fazer toda a diferença. Mas ter o plano certo, contratado com consciência, sabendo de cada detalhe da carência, faz mais diferença ainda.